Indícios concretos de censura

O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, responsabilizar veículos de comunicação que divulguem entrevistas cujo conteúdo da fala do entrevistado possa conter alguma inverdade, seja ela provada ou não. Por unanimidade, os ministros acolheram a tese do ministro Edson Fachin.

O caso concreto trata de um pedido de indenização movido pelo ex-deputado federal Ricardo Zarattini Filho contra o jornal Diário de Pernambuco. A empresa foi condenada a pagar R$ 700 mil.

A publicação veiculou, em 1995, uma entrevista com o ex-policial Wandenkolk Wanderley, que também foi político nos anos 1960 e 1970. Na ocasião, ele acusava Zarattini de ter participado de um atentado a bomba em 1966, no Aeroporto de Guararapes, em que morreram quatro pessoas.

Zarattini era ativista político à época e contrário à ditadura militar. Preso em 1968 por crime político, teve o nome vinculado a essa investigação por um delegado de polícia, que nunca conseguiu comprovar a ligação de Zarattini com o atentado. Com o passar do tempo, o ativista foi condenado a quatro anos de prisão, pela atividade política que exercia, mas sem nenhuma citação no ataque terrorista. A pena dele seria extinta com a Lei da Anistia.

Irritado com as falas de Wanderley, Zarattini procurou a Justiça, em busca de uma indenização por parte do jornal. Acusou o Diário de Pernambuco de tentar caluniá-lo e macular a imagem dele perante a sociedade pernambucana. O processo passou por todas as instâncias do Judiciário, ora com decisões favoráveis ao ex-deputado, ora a favor do jornal.

No STF, a análise do caso começou no plenário virtual em 2020. O relator foi o ex-ministro Marco Aurélio Mello, já aposentado. O magistrado defendeu que não cabia punição ao veículo, já que o jornal em nenhum momento da publicação fez qualquer juízo de valor quanto à figura de Zarattini. O único voto favorável à tese de Marco Aurélio foi da ex-ministra Rosa Weber, que acompanhou integralmente o voto do relator.

Neste ano, o julgamento foi retomado, com a abertura de divergência por parte do ministro Alexandre de Moraes. Para ele, os veículos de comunicação não podem sofrer censura prévia, mas podem ser responsabilizados caso divulguem alguma informação notadamente inverídica.

Na sequência, o atual presidente da corte, Luis Roberto Barroso, se pronunciou e defendeu que os veículos de comunicação só poderiam ser responsabilizados se, à época da publicação, a inverdade dita pelo entrevistado já fosse amplamente conhecida como falsa.

Por fim, o ministro Edson Fachin apresentou um terceiro entendimento, no qual cabe ao veículo de comunicação verificar se todas as falas do entrevistado correspondem à verdade, antes da publicação, e deve conceder direito de resposta a quem venha a ser supostamente difamado por tais declarações, sob risco de responder a processo judicial.

Como houve três entendimentos diferentes, os ministros se reuniram novamente no plenário virtual para decidirem qual tese prosperaria. Por unanimidade, venceu o entendimento de Fachin no caso, que menciona os “indícios concretos da falsidade da imputação”.

Como fica?

A decisão do STF tem repercussão geral, ou seja, vale para todos os casos semelhantes que ainda tramitam no Judiciário. Na prática, isso pode abrir uma brecha para a censura prévia dos veículos. De acordo com o advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, o entendimento da Corte coloca em risco a atuação de veículos jornalísticos, já que muitos poderão ficar com receio de publicar declarações de fontes, pois correm o risco de serem processados por isso.

Ele cita o exemplo de uma entrevista ao vivo, na qual é impossível prever o que o entrevistado irá falar. “O editor pode cortar a ideia de chamar alguém para evitar um problema futuro”, afirma.

Ainda de acordo com Marsiglia, a decisão do STF não foi surpreendente. Isso porque a corte tem apertado cada vez mais o cerco contra o livre fluxo de informação. Ele avalia que os ministros adotaram com os veículos de imprensa uma abordagem semelhante à das redes sociais, em que elas têm sido responsabilizadas pelo conteúdo que os usuários produzem.

“Ele [STF} está aplicando aquilo que serve para plataforma e usuário, na relação entre jornal e entrevistado. Só que são coisas bastante diferentes”, diz Marsiglia, que aponta a inconstitucionalidade da decisão do STF.

Em nota, várias entidades ligadas à liberdade de imprensa repudiaram a decisão do STF. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) demonstrou preocupação com o entendimento da corte. “A modulação dos votos reforça a natural responsabilidade dos veículos com o que divulgam, mas ainda pairam dúvidas sobre como podem vir a ser interpretados juridicamente os citados ‘indícios concretos de falsidade’ e a extensão do chamado ‘dever de cuidado'”, disse a entidade em nota.

Fonte: O Bastidor

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