Gaza: enfermeira brasileira relata rotina sob cerco e escassez extrema

Em entrevista ao Metrópoles, enfermeira brasileira do MSF relata fome, colapso e bloqueio à ajuda em Gaza após mais de 600 dias de guerra/Foto: Abed Rahim Khatib/Anadolu via Getty Images

Quase dois anos depois do início da guerra entre Israel e Hamas, que já deixou mais de 55 mil mortos na Faixa de Gaza, a enfermeira brasiliense Daniela Mota, graduada na Universidade de Brasília (UnB), atua em meio ao colapso. Desde junho, ela vive na região como gerente de atividades de enfermagem pelo Médicos Sem Fronteiras (MSF) e descreve uma realidade marcada pela fome, superlotação de hospitais e falta de insumos médicos.

Daniela,de 32 anos, chegou à região no início do último mês e deve ficar até o fim de agosto. Apesar da tensão constante, ela afirma que voltaria: “Muita gente volta, o que é bem interessante. As pessoas ficam tocadas com o trabalho daqui, com a população palestina, com toda a situação.

Em entrevista ao Metrópoles, a enfermeira afirma que a convivência com a população local tem sido essencial para compreender o impacto humano da guerra. “O entendimento mais profundo acontece ao conviver com as pessoas locais. Não só com as pessoas que a gente atende: o nosso staff aqui, a maioria, é local”, afirma.

Segundo Daniela, cerca de 85% a 90% dos profissionais do MSF na região são palestinos. Muitos deles já foram deslocados diversas vezes e seguem atuando mesmo diante da fome e do medo.

“Eles têm que sair, porque senão tem risco de bombardeio… Por outro lado, me impressionou positivamente como as pessoas que trabalham com a gente são esforçadas, capacitadas e motivadas”, diz.

Veja a entrevista completa:

Guerra contra fome

A brasiliense relata que os principais desafios enfrentados atualmente são a escassez de suprimentos e as limitações para expandir as atividades. Segundo ela, a demanda é alta e a organização teria condições de fazer mais, mas a falta de insumos e de espaço físico adequado tem impedido esse avanço.

Daniela destaca ainda a crise nutricional que atinge bebês, crianças e gestantes. Um dos episódios mais marcantes foi o caso de um bebê de 40 dias, órfão de pai e abandonado pela mãe.

“A tia [da criança] chegou para gente, na nossa clínica, desesperada por mais leite… Estava dando água para o bebê há dois dias”, conta.

A enfermeira passou o dia fazendo ligações até conseguir somente uma lata de fórmula infantil. Ela lamenta que, no momento, o que conseguem oferecer é muito pouco e acrescenta que histórias como essa se repetem diariamente.

Imagem colorida de médica brasileira em Gaza - Metrópoles
Enfermeira brasileira, Daniela Mota, atuando em Gaza

Panorama atual na Faixa de Gaza

  • A guerra em Gaza se estende por mais de 600 dias, com mais de 50 mil palestinos mortos e devastação generalizada. Os números só aumentam à medida que o conflito segue com intensidade.
  • As negociações em Doha avançaram em um novo acordo que prevê um cessar-fogo de 60 dias, a libertação de reféns (vivos e mortos), a devolução de prisioneiros palestinos e um aumento substancial da ajuda humanitária.
  • No entanto, retomadas de ataques intensos mostram que os combates seguem ativos. Testemunhas afirmam que a ajuda humanitária ainda encontra obstáculos diretos à sua entrada.
  • As concessões iniciais das negociações incluem retiradas limitadas de tropas e prazos curtos — mas não garantem solução duradoura, especialmente se houver falhas na segunda fase do acordo.

Ajuda humanitária travada pelo cerco

Após o caos e as mortes que marcaram as últimas semanas na Faixa de Gaza, organizações humanitárias internacionais anunciaram a suspensão temporária de parte das atividades na região, citando a falta de segurança para seguir operando.

O cenário é de colapso: a impossibilidade de garantir o básico gera frustração entre os profissionais em campo, como Daniela. Com experiência no Iraque e na República Centro-Africana, ela relata que a situação em Gaza é única pela intensidade das restrições.

“Nunca vi ajuda humanitária sendo impedida de atuar. É a comida que não entra, é combustível”, diz. Ela conta que existem locais onde os suprimentos estão a poucos quilômetros de distância, mas seguem barrados.

Daniela reforça o papel de denúncia da organização Médicos sem Fronteiras. “Nosso trabalho é de atendimento à população, mas também é o que a gente chama de advocacia, para dar voz ao que está acontecendo nesses lugares”, explica.

O peso de retornar

Questionada sobre o impacto emocional da missão, Daniela avalia que sentirá o peso quando retornar: “Acho que vou sentir mais quando sair daqui do que enquanto estou vivendo. Eu me coloquei aqui, mas posso me retirar”, explica.

A enfermeira brasiliense faz um apelo para que a comunidade internacional não vire as costas para o que acontece na Faixa de Gaza há mais de 600 dias. “É preciso não ignorar e se mobilizar. Isso precisa acabar. As pessoas precisam voltar a ter vida, a viver normalmente”, ressalta.

Fonte: metropoles.com/Manuela de Moura

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